“Querer prescindir de Deus”[1], como diria Lagrange, traz sabor ao post de hoje. Em outras palavras, a capacidade do homem de tornar-se insensível a ponto de esquecer de Deus. Insensível, e mais, egoísta, pois não reconhece suas origens, e por isso, vive uma vida desconcertada.
Por vezes, tenta alinhá-la à luz de suas ideias e considerações próprias, mas como deve, tantas vezes mais, continuar desencontrando-se, pois passa a depositar credibilidade e investimento em uma reserva onde não há de encontrar. É tempo de lembrarmos que, na face do Cristo, encontramos a sede do eterno que permanece nas raízes mais profundas do nosso interior.
Como são muitas as vezes que nos deparamos com falsas ideias e concepções humanas quanto à busca pelo sentido da vida. Considerando a si mesmo, em suas capacidades tantas, conscientemente, o próprio homem enxerga em si a consciência de tudo e o fim último. Nos últimos dias, lendo As três vias e as três conversões, me deparei com reflexões parecidas. Na verdade, com o mínimo de atenção, veremos que nos últimos posts, a linearidade das temáticas passa um pouco por todas essas noções.
Caberia lembrarmos de inúmeras outras obras que nos fazem mais próximos deste olhar. Afinal de contas, a literatura católica é vasta e belissimamente real. Entretanto, permaneço com uma atenção especial para o conjunto dos salmos das Sagradas Escrituras, nomeado saltério. É com ele, contemplando-o, que percebemos que só o infinito, o Sumo Bem, há de nos preencher.
Em sua raiz hebraica, a origem da palavra “salmo” corresponde a um ato de louvor, hino de elevação e glória. Quanta beleza encontramos aqui... é a voz dos salmos que também encontra a nossa voz, pois nos assegura que o louvor a Deus parte de uma dinâmica interior daquele que necessita, e ao passo que coloca-se como necessitado, percebe que o louvor nos lança para fora de nós mesmos para que encontremos o Outro.
Na prática do louvor, o homem dos primeiros séculos, assim como o homem de hoje, percebe que o vazio que habita em si só consegue ser saciado, plenamente realizado, no encontro com o Senhor. É n’Ele que, então, findam-se as tantas buscas desenfreadas do próprio homem para tentar responder suas inquietações. Não me refiro tão somente às buscas ideológicas, culturais... antes, englobo-as num só contexto: enxergar a natureza humana fora da graça de Deus nos abre um enorme espaço para que a vida seja vivida como um caos. Com ideais prazerosos e o valor da vida seguramente compreendidos, imagina-se que o homem sabe viver quando, na verdade, vive perdidamente distante de sua maior consciência.
Lendo a obra de Garrigou-Lagrange, atentei para um trecho importantíssimo, embora curto, das Sagradas Escrituras: unum est necessarium. Sim! É o Senhor que nos diz, “uma só coisa é necessária”, assegurando que o nosso coração, terra de tantas experiências, acertos, desencontros e morada do eterno, não comporta espaço para dois sentidos de vida. Ou seja, “a única coisa necessária que Jesus falava a Marta e Maria consiste em escutar a palavra de Deus e em vivê-la”.[2] Não existem dois espaços com os quais podemos dividir a integridade humana: ou permanecemos livres diante da certeza da vida – Deus – ou continuamos tentando descobri-la diante de meras explicações insaciáveis.
Cabe mergulharmos no mistério profundo do desejo salvífico de Deus dirigido ao seu povo, desde os primeiros séculos e para sempre. Ainda que o homem não reconheça, não seja fiel ou ignore tamanho desejo e o seu anseio pelo homem, a vontade de Deus não o trairá. O desejo de Deus não o esquecerá. É uma realidade vitalmente difícil de ser esquecida, pois, mais do que as outras tantas verdades com as quais nos deparamos dia após dia, muitas vezes enlaçadas e enraizadas sem que nem percebamos, a realidade do desejo divino e o a nossa necessidade d’Ele é manifesta diária e eternamente.
Tenho um grande apreço e, honestamente, um grande amor pela compreensão real da antropologia teológica, que é plasmada na natureza humana. Quanta disponibilidade de um Outro de nos tornar próximos e de nos encontrar. O homem não mereceu e nem merecerá o que o Senhor faz por nós para que alcancemos a santidade, e por assim dizer, para que vivamos eternamente em Seus átrios.
Alegria da nossa infância, juventude, vida adulta ou velhice: para sempre mantermos uníssona a nossa voz à voz de Quem passamos a vida inteira ansiando encontrar. “O homem tem necessidade absoluta de Deus como um recém-nascido tem de sua mãe. O Pai nos fez para Ele, mas nosso coração está angustiado, dividido por uma surda inquietação. De fato, ele espera simplesmente repousar em Deus; somente Ele pode nos satisfazer. Eis por que, conscientemente ou não, estamos constantemente em busca do Pai.”[3] Doce trabalho do Artesão que, diariamente, insere no coração do homem a sua proposta de amor.
E insere docilmente, pois nunca submete impulso que não seja voluntário do homem. Sim! Amando-o em sua forma total e doando-lhe o coração por completo, Deus oferece e respeita a liberdade humana. Portanto, reconhecer “uma coisa necessária” passa, necessariamente, pelo caminho de decisão. É o que Santo Agostinho tenta informar ao escrever a obra Cidade de Deus, diferindo o desejo do homem pelos prazeres do mundo e mostrando-lhe que seu coração, para sempre, há de desejar o prazer de estar com o Senhor, suficientemente saciável. E a sua proposta de amor é lançar-nos na consciência de que, unidos a Ele, focaremos o nosso coração no d’Ele, estabilizaremos a beleza necessária contemplando a beleza d’Ele.
Na obra Ética a Nicômaco, Aristóteles nos deixa uma segura compreensão sobre a contemplação, e ousaríamos usá-la para fazer uma analogia. O filósofo tratava dos assuntos que dizem respeito ao coração e a alma elevados longe do ideal cristão. Nós, pelo contrário, usaremos a sua deixa afirmativa que nos torna clara a ideia de que a contemplação é a forma elevada do coração do homem, para dizer que ele só conseguirá encontrar tal elevação se estiver convictamente seguro de que o fará com [e em] Deus.
Pela contemplação interior, somos elevados à natureza de Deus, que nos acolhe e nos ama. Pela contemplação do divino em nós, compreendemos a graça da oração ao lembrarmos da frase do Cardeal Sarah: “Pela oração, o homem é recriado na imensidade de Deus; ela é uma pequena dissipação da eternidade. [...] Com Cristo, a contemplação se assemelha à alegria de dois amantes que se olham silenciosamente”.[4]
A esperança, porta tão larga e decisivamente aberta, é um grande desembocar da graça de Deus em nós. Somos plenificados na misericórdia de d’Ele e também na esperança que vem de Seu coração. Confiamos a nossa vida, o nosso coração, a nossa oferta e o que há de mais íntimo em nós, certos de que, somente n’Ele, “a única coisa necessária” encontra seu alimento mais ardentemente buscado.
Devemos olhar com atenção para as tantas vezes que nos deixamos levar pelo desengano, pela destruição própria, pelos caminhos que nos roubam de Deus. Muitas vezes, não são precisamente caminhos físicos, estradas da vida pelas quais passamos andando ou dentro de um carro. Também, muitas são as vezes que vivemos um caminho que nós mesmos escolhemos, caminho que nos afasta de Deus, nos coloca no centro de tudo e de todas as coisas, ignorando o sentido de tudo e a busca maior de toda a humanidade. Caminho que só deseja satisfazer os próprios anseios, caminho do desequilíbrio...
A porta da misericórdia e da esperança também é a porta do reencontro e do desejo diário de pertencer ao Outro que sacia nossas necessidades. Portanto, esforcemo-nos, enquanto tivermos vida, para que a voz do Amor seja uma só com a voz do profundo do nosso coração: a voz da necessidade. Reconhecer-se pequeno é viver a liberdade de saber que é necessária uma grandeza para saciar-lhe, e ela, impreterivelmente sempre, encontraremos no Senhor, o Cristo de nossas vidas.
Com a Virgem Maria, a Senhora da Assunção, caminhemos com liberdade. Ainda celebrando a honra de sua assunção, também entreguemos o desejo dos nossos corações aos pés dela para que chegue seguramente aos pés do Filho. Entreguemos o desejo sincero e contínuo de permanecermos no caminho salvífico, e nele, encontrarmos para sempre a única coisa que nos é necessária: o encontro pleno, real e verdadeiro com o Senhor de nossas vidas.
[1] Reginald Garrigou-Lagrange, As três idades da vida interior, Tomo I; Cultor de Livros, p. 04. [2] Ibidem. [3] Cardeal Sarah, Deus ou nada, Fons Sapientiae, p. 269. [4] Ibidem, p. 266.
Por Tatiane Medeiros
Comentários